terça-feira, 23 de dezembro de 2008

INDOMÁVEL

sei que não tens contornos
e és da cor
das tardes insubmissas

Anthero Monteiro
(foto de Nan Goldin)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

NÃO TE AMO, QUERO-TE

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n'alma tenho a calma,
A calma do jazigo.
Ai! Não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida - nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! Não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau, feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

77 - SOU NÓMADA E BASTA-ME

Sou nómada e basta-me
Beber a água que vem da montanha
E olhar a mica do céu onde se reflectem
As mutações da Coisa — o pó
Que nela pousa. A teia do conhecimento
Está podre e não vou
Deitar-me nela. Escrevo porque sou um arco
Que vai acumulando alguns restos
Alguma dor algum vento perfumado
E subitamente dispara. Cinza. Palavras
Que não têm deuses nem brilho nem nada.

Casimiro de Brito
Na Via do Mestre 2000

terça-feira, 4 de novembro de 2008

STRIP TEASE

Jamais eu ficaria quieto
sob o teu olhar;

que muito menos quietos,
no direito de ir e vir,
sobre o teu corpo,
seriam os meus olhos lívidos.

Porque sobre mim,
bastam os sons
dos teus vestidos:
já me desvestem a alma.


Soares Feitosa
Salvador, madrugada alta, 5/12/1996

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

SE ME DEIXARES, EU DIGO

Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente;
E, n'este mundo de enganos,
Falla verdade quem mente.
Tu dizes que a minha boca
Já não acorda desejos,
Já não aquece outra boca,
Já não merece os teus beijos;
Mas, tem cuidado commigo,
Não procures ser ausente:
- Se me deixares, eu digo
O contrario a toda a gente.

António Botto, in 'Canções'

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

NAMORADOS E AMANTES

Amantes não são namorados,
namorados namoram,
amantes amam-se!
Amantes fogem sempre,
amantes escondem-se
sem fazer alarde.
Namorados, são o dia e a noite,
amantes, são a tarde.

Namorados são avassaladores,
amantes são suaves,
mas, amam-se tanto que se magoam,
e, às vezes, sentem dores.

Namorados riem, divertem-se,
amantes, apenas se amam.
Namorados, quando estão no Central Park,
correm atrás um do outro.
Nos fins de semana na Lapa
caem sempre nas batucadas,
e se vão à praia de Camboriú, que lindo,
mergulham no mar de mãos dadas!

Amantes, beijam-se nas mãos,
amantes nunca se falam,
sentem-se, cheiram-se,
exalam...

Namorados, passeiam de bicicleta,
andam de patins no gelo.
Amantes acendem a lareira,
sentam-se no tapete,
ela cheira as mãos dele,
e, ele, o seu cabelo!
Os rostos encostam-se e,
assim, ficam por longo tempo,
as mãos apertam-se um pouco mais,
amantes não falam,
deitam-se, perdem-se,
e procuram-se por trás.

Namorados abraçam-se
olham-se, ajudam-se,
esperam-se na escola,
comem pipocas na fila do cinema,
no fim de semana, eu prefiro Búzios,
tu, Saquarema!

Namorados discutem por qualquer coisa,
amantes amam-se.
Namorados sentem ciúme,
ficam de mal, trocam de telemóvel.
Amantes esperam-se com a banheira cheia,
só não desejam é falar!

Namorados encontram-se de manhã
dirigem-se para a escola
e marcam para a noite um passeio.
Amantes encontram-se sempre de tarde
o carro a voar, a chave recebida,
mal a porta se fecha,
as bocas lambem-se,
eu, doido de amor,
tu, perdida!

Namorados, quando passeiam,
estão sempre de mãos dadas,
e, felizes, balançam os braços.
Amantes olham-se no espelho do quarto
e apertam-se nos abraços.
Namorados fazem as pazes
e prometem juras de amor,
marcam o fim de semana em Penedo,
Lumiar, Salvador.
Amantes estão sempre num quarto,
beijam-se, mordem-se, molham-se,
transpiram, não dormem,
arriscam-se ao enfarte!

O que há de mais belo na vida
namorados e amantes têm:
namorados são felizes,
amantes, também...

Ivan Siqueira
(foto: Simone Beauvoir, de © Art Shay)

domingo, 7 de setembro de 2008

NOCTURNO E ELEGIA

Se perguntar por mim, traça no solo
uma cruz de silêncio e de cinza sobre
o impuro nome que padeço.
Se perguntar por mim, diz que estou morto
e que apodreço com as formigas.
Diz-lhe que galho sou da laranjeira
e a veleta simples de uma torre.

Não lhe digas que ainda choro
acariciando o oco de sua ausência
onde sua cega estátua ficou impressa
na espera incessante de que regresse o corpo.
A carne é um laurel que canta e sofre
e eu esperei em vão sob sua sombra.
Já é tarde. Sou um peixinho mudo.

Se perguntar por mim dá-lhe estes olhos,
estas palavras grises, estes dedos;
e a gota de sangue neste lenço.
Diz-lhe que estou perdido, que virei
uma perdiz escura, um falso anel
à beira de juncos esquecidos;
diz-lhe que vou do açafrão ao lírio.

Diz-lhe que quis perpetuar seus lábios,
habitar o palácio de sua fronte.
Navegar uma noite em seus cabelos.
Aprender a cor de suas pupilas
e apagar-se em seu peito suavemente,
nocturnamente fundido, em letargia
num rumor de veias e surdina.

Agora não posso ver ainda que suplique
o corpo que vesti de meu carinho.
Tornei-me um rosado caracol,
fiquei fixo, roto, desprendido.
E se duvidais de mim, acreditai no vento,
olhai ao norte, perguntai ao céu
que vão dizer se espero ainda ou se anoiteço.

Ah! Se perguntar diz-lhe o que sabes.
As oliveiras falarão de mim um dia
quando eu for o olho da lua,
ímpar sobre a festa da noite,
adivinhando conchas da areia,
o rouxinol suspenso de um astro
e o hipnótico amor das marés.

É verdade que estou triste, mas tenho
semeado um sorriso no tomilho,
outro sorriso escondi em Saturno
e perdi o outro não sei onde.
Melhor será que espere a meia-noite
o extraviado odor dos jasmins,
e a vigília do telhado, fria.

Não me lembres seu dedicado sangue
nem que eu pus vermes e espinhos
pra morder sua amizade de nuvem e brisa.
Não sou o ogro que cuspiu em sua água
nem o que um cansado amor paga em moedas.
Não sou o que freqüenta aquela casa
presidida por uma sanguessuga!

(Ali se vai com um ramo de lírios
para que o esmague um anjo de asas turvas.)
Não sou o que trai as pombas,
as crianças, as constelações ...
Sou uma tenra voz desamparada
que sua inocência busca e solicita
com doce assobio de pastor ferido.

Sou uma árvore, a ponta de uma agulha,
um alto gesto eqüestre em equilíbrio;
a andorinha em cruz, o lubrificado
vôo da coruja, o susto de um esquilo.
Sou tudo, menos isso que desenha
sinais de lama nas paredes
dos bordéis e dos cemitérios.

Tudo, menos aquilo que se oculta
sob uma seca máscara de esparto.
Tudo, menos a carne que procura
voluptuosos anéis de serpente
cingindo em espiral viscosa e lenta.
Sou o que tu me mandes, o que inventes
para enterrar meu pranto na neblina.

Se perguntar por mim, diz-lhe que moro
na folha do acanto e na acácia.
Ou, preferindo, diz-lhe que morri.
Dá-lhe o suspiro meu, e o meu lenço;
meu fantasma na nave do espelho.
Talvez eu chore no laurel ou busque
lembranças minhas no feitio de estrela.

Emilio Ballagas - De: Sabor eterno, 1939

(Poeta cubano, nasceu em Camagüey e morreu em Habana)

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Esta Tarde

Ahora quiero amar algo lejano...
Algún hombre divino
Que sea como un ave por lo dulce,
Que haya habido mujeres infinitas
Y sepa de otras tierras, y florezca
La palabra en sus labios, perfumada:
Suerte de selva virgen bajo el viento...

Y quiero amarlo ahora. Está la tarde
Blanda y tranquila como espeso musgo,
Tiembla mi boca y mis dedos finos,
Se deshacen mis trenzas poco a poco.

Siento un vago rumor... Toda la tierra
Está cantando dulcemente... Lejos
Los bosques se han cargado de corolas,
Desbordan los arroyos de sus cauces
Y las aguas se filtran en la tierra
Así como mis ojos en los ojos
Que estoy sonañdo embelesada...

Pero
Ya está bajando el sol de los montes,
Las aves se acurrucan en sus nidos,
La tarde ha de morir y él está lejos...
Lejos como este sol que para nunca
Se marcha y me abandona, con las manos
Hundidas en las trenzas, con la boca
Húmeda y temblorosa, con el alma
Sutilizada, ardida en la esperanza
De este amor infinito que me vuelve
Dulce y hermosa...

Alfonsina Storni

terça-feira, 8 de julho de 2008

Convida-me só para jantar

E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer uma sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar

Ana Goês

quinta-feira, 12 de junho de 2008

RUBAIYAT

Vinho faz perdoar a pena de viver.
Bebe vinho! Vinho cor de rubi, vinho cor-de-rosa, vinho cor de sangue!

Bebe vinho!
Tens muitos séculos para dormir.
Vinho é amargo? Não importa! Tem o gosto da vida!
Todos os reinos por uma taça de vinho precioso.
Todos os livros e toda ciência dos homens por um perfume suave de vinho.
Todos os hinos de amor pela canção do vinho que corre.
Toda a glória de Feridoum pelos reflexos do vinho na ânfora.
Bebo o vinho que me oferece uma linda rapariga e não cuido de minha salvação.

Sempre ouço dissertar sobre os gozos reservados aos eleitos, limitando-me a dizer:
Só tenho confiança no vinho.
Bebe vinho!
Só ele te dará a mocidade, ele é a vida eterna.

Bebe um pouco de vinho porque dormirás muito tempo,
debaixo da terra, sem amigo, sem camarada, sem mulher.
Nosso amigo mais velho é o vinho mais novo.
O vinho destrói os cuidados que nos atormentam e dá-nos a quietude perfeita.

Ouço dizer que os amantes do vinho serão castigados no inferno.
Se os que amam o vinho e o amor vão para o inferno o paraíso deve estar vazio.
Vinho! Eis o remédio que carece o meu coração doente.
Vinho com perfume almiscarado! Vinho cor-de-rosa!

Dá-me vinho para apagar o incêndio da minha tristeza.
Bebe e esquece que o punho da tristeza em breve te derrubará.
Vinho! Vinho em torrentes! Que ele palpite nas minha veias.
Que ele borbulhe na minha cabeça!

Quando bebo, ouço mesmo o que não me pode dizer a minha bem amada!
Mais vale uma ânfora de vinho do que o poder, a glória e as riquezas.
O vinho libertar-te-á das névoas do passado e das brumas do futuro.
O vinho inundar-te-á de luz, livrando-te dos grilhões de prisioneiro.

Quando Deus me criou sabia que eu beberia vinho.
Se me tornasse abstêmio, sua ciência estaria errada.
Trazei-me todo o vinho do Universo!
Meu coração tem tantas feridas!…

O vinho proporciona aos sábios uma embriaguez semelhante à dos eleitos.
Dá-nos a mocidade, restitui-nos o que perdêramos, põe ao nosso alcance tudo o que desejamos.
O vinho queima como torrente de fogo,
mas, às vezes, tem sobre as nossas mágoas o efeito da água pura e fresca.


Omar Khayyam

terça-feira, 20 de maio de 2008

( Não: não quero nada )

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo …
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Álvaro de Campos

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Matadouro do Dia

Avisem os tristes da cidade:

darei de beber
de meus olhos perfurados
A quem ficar ao meu lado.
Darei de comer
de meu corpo torturado
aos nus e desesperados.

Venham beber o vinho amargo
da minha bêbada amizade
os que nunca se encontraram.
Voltaremos tristes para casa
( o peso do mundo nos ombros )
Só depois de beber, e ficar puros
esqueceremos as coisas
( seus escuros muros altos ).

Venham beber o vinho amar-o-amargo
do meu sangue violentado.

No porto inseguro de mim
há pão e fel para todos.
O país é rico e sujo:
Amanhã seremos degolados.

Darei de beber
do meu sangue aleijado
aos tristes, aos suicidas
aos pederastas, às prostitutas.

VAMOS TODOS, MUTILADOS
AO MATADOURO DO DIA!

Brasigóis Felício

sábado, 12 de abril de 2008

Apagar-me

Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.

Paulo Leminsk

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Me gustas cuando callas...

Me gustas cuando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca.
Parece que los ojos se te hubieran volado
y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.

Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
Déjame que me calle con el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada.
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Pablo Neruda

sábado, 29 de março de 2008

"Toco a tua boca com um dedo, toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse a sair da minha mão, como se, pela primeira vez, a tua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no teu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com a minha mão no teu rosto, e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em ti.
Tu olhas-me, de perto, olhas-me, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhamo-nos cada vez mais de perto e os nossos olhos tornam-se maiores, aproximam-se uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no teu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto-te tremular contra mim, como uma lua na água.”

Júlio Cortázar

segunda-feira, 24 de março de 2008

Vice-Versa

Tenho medo de ver-te,
necessidade de ver-te,
esperança de ver-te,
insipidezes de ver-te,
tenho ganas de encontrar-te,
preocupação de encontrar-te,
certeza de encontrar-te,
pobres dúvidas de encontrar-te,
tenho urgência de ouvir-te,
alegria de ouvir-te,
boa sorte de ouvir-te,
e temores de ouvir-te,
ou seja,
resumindo
estou fodido
e radiante,
talvez mais o primeiro
que o segundo
e também
vice-versa

Mário Benedetti

sábado, 22 de março de 2008

Renascer

O encanto fugiu, voou e acabou-se.

Não há o que fazer, nem mesmo ouvir um tango.

No amor o desencanto
equivale à morte. Ele expele,
afasta, finda, sepulta, crema.
Com a mesma força que o encanto
atrai, aproxima, entrelaça.


Por ora não há nada a fazer
senão ocupar-me da terrível tarefa
de retirar milhares de camadas de ti
que se fixaram em mim.
De tanto dormires sobre o meu peito,
a máscara do teu rosto ficou moldada
por sobre o meu coração.

Quando, novamente, o infortúnio atravessar
uma faca enferrujada na minha carne
não terei as tuas mãos para tirá-la
das minhas entranhas.Quando for lua cheia
não te terei ao lado, para aos berros anunciá-la a ti
como se estivesse a anunciar a descoberta
de um astro novo.

Inúteis as lágrimas. Dispensável pôr–me de joelhos.
Se alegre, se saltitante,
à tua frente, como um potro adolescente,
deixei de te encantar,
não seria com a espinha dobrada
e os olhos nevados de sal
que eu faria o teu coração
novamente bombear
carinho por mim.

Nada a fazer.
Excepto aprender, com a aurora
a Renascer.

Adalberto Monteiro

quarta-feira, 19 de março de 2008

Táctica e Estratégia

Minha táctica é olhar-te,
aprender como és,
querer-te como és.
Minha táctica é falar-te
e escutar-te,
construir com palavras
uma ponte indestrutível.
Minha táctica é ficar na tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto,
mas ficar-me em ti.
Minha táctica é ser franco
e saber que és franca,
e que não nos vendamos
simulacros
para que entre os dois
não haja cortina
nem abismos.
Minha estratégia é,
por outro lado,
mais profunda e mais
simples...
minha estratégia é
que um dia qualquer,
não sei como nem sei
com que pretexto,
por fim precises de mim.

Mário Benedetti

O Grito

Se ao menos esta dor servisse,
se ela batesse nas paredes,
abrisse portas,
falasse,
se ela cantasse e despenteasse os cabelos...

Se ao menos esta dor se visse,
se ela saltasse fora da garganta como um grito,
caísse da janela, fizesse barulho
morresse...

Se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força,
depois cuspir a saliva fora,
sujar a rua, os carros, o espaço, o outro...
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre. Tem o direito de não sofrer.

Se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer, doer, doer visível,
doer penalizante,
doer com lágrimas...

Se ao menos esta dor sangrasse!

Renata Pallottini