sábado, 29 de março de 2008

"Toco a tua boca com um dedo, toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse a sair da minha mão, como se, pela primeira vez, a tua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no teu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com a minha mão no teu rosto, e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em ti.
Tu olhas-me, de perto, olhas-me, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhamo-nos cada vez mais de perto e os nossos olhos tornam-se maiores, aproximam-se uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no teu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto-te tremular contra mim, como uma lua na água.”

Júlio Cortázar

2 comentários:

Anónimo disse...

Adorei este!
Estou a gostar muito do teu blogue!

cláudia pinho disse...

O Júlio Cortázar tem textos muito interessantes, se tiveres um tempinho para procurar coisas dele recomenda-se... senão, posso envia-te o que conheço deste poeta.
Ainda bem que gostas, é dos meus favoritos.
Beijinhos e volta sempre!