quarta-feira, 7 de novembro de 2012

CAFÉ ORFEU

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.
Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.
Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.
E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém(eu provavelmente)
nunca tivesse existido.


Manuel António Pina in Um Sítio Onde Pousar a Cabeça

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

AINDA

Não o creio ainda
Estás a chegar ao meu lado
E a noite é um punhado
De estrelas e de alegria

Sinto o gosto escuto e vejo
Teu rosto teu passo longo
Tuas mãos e no entanto
Ainda não o creio

Teu regresso tem tanto
Que ver contigo e comigo
Que por cabala o digo
E pelas dúvidas o canto
Ninguém nunca te substitui
E as coisas mais triviais
Se voltam fundamentais
Porque estás a chegar a casa

No entanto ainda
Duvido desta boa sorte
Porque o céu de ter-te
Me parece fantasia

Porém vens e é certo
E vens com o teu olhar
E por isso a tua chegada
Torna mágico o futuro

E embora nem sempre te tenha entendido
Minhas culpas e meus fracassos
Em troca sei que nos teus braços
O mundo faz sentido

E se beijo a ousadia
E o mistério dos teus lábios
Não haverá dúvidas nem retornos
Te quererei mais
Ainda.

Mário Benedetti

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

EM TODA A CASA

pelas paredes ainda cheira à tua pele cutânea.

mas desde que te foste estar aqui é oco,
cansativo, uma espera. E às vezes (como se
tivéssemos chorado) respirar custa.

sobretudo nada apetece.
sair para a rua? Ir então em frente a repetir
os passos, passear nas avenidas a espaçar as
horas - dispersar a espera?

tudo cinzento. Choverá?
aqui é que não fico. No quarto onde dormimos
o espaço sobra, e cada coisa já morreu ou está
a mais.

em toda a casa uma violência subterrânea:
a tua ausência

João Habitualmente

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

*

Asas que fossem, tuas
mãos podiam
tocar a íntima
nervura do silêncio.

*

Onde é mais surda
a floresta
aí te penso
e escuto

Albano Martins

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A VIRGINDADE DA AMÉLIA

aceita este livro, diria, mais bonito
do que os outros. encontrarás nele
imagens, sim, imagens que talvez te
surpreendam. mas não te assustes,
tantas vezes to peço, não te assustes.
repara na natureza das coisas, em como
é tão comum depararmo-nos com estas ideias
e talvez entendas

há uma pornografia erudita feita
para gente como nós. uma coisa assim entre
o querer fazer, a aflição espiritual
e o amor eterno

depois vem cá ter. juro-te que às
cinco em ponto da tarde não há ninguém
na casa dos meus pais

Valter Hugo Mãe - pornografia erudita

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

E POR VEZES AS NOITES DURAM ANOS

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
Num segundo se envolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

domingo, 20 de junho de 2010

VIAGEM

Quem sabe, quem sabe,
ah, quem sabe
se fui eu que fugi
ou se me abandonaram
à beira de qualquer estrada.
Que terras meus olhos desbravaram,
que mundos vi,
para ser esta saudade de tudo,
uma dor de tudo,
de tudo morrer e renascer em mim!
Em que porto estes músculos
suaram à sombra de guindastes,
que terra áspera e quente a minha enxada rasgou,
de que barco fui piloto
e de que pátria emigrante
para sentir as dores que estão fora de mim?
Quem me deu alma de cigano
e me lançou ao vento
à espera de festim?

Homens da terra e do mar,
duros, de dentes vidrados,
gritando o futuro
e sempre crescendo;
- quem me pôs à frente da guerra,
ébrio de uma luta
que não aprendo?
Homens de longe, estranhos,
esmagando as larvas do celeiro;
- onde vos animei
embora com a pobreza das palavras?
Em que pátria fui vosso companheiro?

Ah, quem sabe
porque esta minha voz enrouqueceu,
esta minha voz que provou o amargo das escarpas
- e gostou!
Quem sabe se um encanto me fez nómada,
nu, faminto e descalço como os mais
ou se todas as almas
esta minha alma penada violou?

Fernando Namora
(foto retirada do blog A Terceira Noite)