segunda-feira, 26 de abril de 2010

A CRUZ DE GIZ

Eu sou uma criada. Eu tive um romance
Com um homem que era da SA.
Um dia, antes de ir
Ele mostrou-me, sorrindo, como fazem
Para apanhar os insatisfeitos.
Com um giz tirado do bolso do casaco
Ele fez uma pequena cruz na palma da mão.
Ele contou que assim, e vestido à paisana
anda pelas repartições do trabalho
Onde os empregados fazem fila e protestam
E protesta juntamente com eles, e fazendo isso
Em sinal de aprovação e solidariedade
Dá uma palmadinha nas costas do homem que protesta
E este, marcado com a cruz branca
é apanhado pela SA.
Nós rimos com isso.
Andei com ele um ano, então descobri
Que ele havia retirado dinheiro
Da minha caderneta de poupanças.
Havia dito que a guardaria para mim
Pois os tempos eram incertos.
Quando lhe pedi satisfações, ele jurou
Que as suas intenções eram honestas.
Dizendo isso
Pôs a mão no meu ombro para me acalmar.
Eu corri, aterrorizada.
Em casa
Olhei para as minhas costas no espelho, para ver
Se não havia uma cruz branca.

Bertold Brecht

segunda-feira, 19 de abril de 2010

PRESSA DE VIVER

[para o Zé, que nunca lerá este poema]

Negro, trinta e dois anos,
dealer. Pensava que a guerra
no Kosovo tinha por motivo único
a resistência à conversão em euros
- e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão. Noutra noite, vi-me obrigado
a explicar-lhe o melhor que pude
o que era o FMI - que ele decerto
interpretou como um partido de 'tugas
vagamente hermético. De facto, é outra
a sua economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de esquina, os dois ou três filhos
de que apenas bêbedo se lembra.

Mas não é bem disso que eu hoje
queria falar. Passámos a noite
lado a lado, no mesmo balcão.
Demorei algum tempo a cumprimentá-Io
- «tá-se?». Pediu logo grandes, imensas
desculpas por não me ter visto.
Que era «pressa de viver», garantiu-me,
aquilo que nos torna tão cegos é
às evidências, ao rosto desse próximo
que só por bíblico acaso amamos
- quando o ódio, mais discreto,
dá nome e sentido às ruas.

Fingi acreditar, procurei não
desmentir o seu olhar verde
vindo de outro qualquer planeta.
Seria difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva demora de morrer
que me faz sair de casa e procurar,
entre ninguém, a pior das companhias: eu.

Acabou por levar para a rua
uma imperial de plástico, lembrado
talvez dos possíveis clientes
a quem ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o calor sinistro deste Verão.
Na verdade, pouco mais haveria
a dizer sobre este corpo brando que
há vários anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos
- e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem objecto a que chamamos vida.

Manuel de Freitas