domingo, 7 de setembro de 2008

NOCTURNO E ELEGIA

Se perguntar por mim, traça no solo
uma cruz de silêncio e de cinza sobre
o impuro nome que padeço.
Se perguntar por mim, diz que estou morto
e que apodreço com as formigas.
Diz-lhe que galho sou da laranjeira
e a veleta simples de uma torre.

Não lhe digas que ainda choro
acariciando o oco de sua ausência
onde sua cega estátua ficou impressa
na espera incessante de que regresse o corpo.
A carne é um laurel que canta e sofre
e eu esperei em vão sob sua sombra.
Já é tarde. Sou um peixinho mudo.

Se perguntar por mim dá-lhe estes olhos,
estas palavras grises, estes dedos;
e a gota de sangue neste lenço.
Diz-lhe que estou perdido, que virei
uma perdiz escura, um falso anel
à beira de juncos esquecidos;
diz-lhe que vou do açafrão ao lírio.

Diz-lhe que quis perpetuar seus lábios,
habitar o palácio de sua fronte.
Navegar uma noite em seus cabelos.
Aprender a cor de suas pupilas
e apagar-se em seu peito suavemente,
nocturnamente fundido, em letargia
num rumor de veias e surdina.

Agora não posso ver ainda que suplique
o corpo que vesti de meu carinho.
Tornei-me um rosado caracol,
fiquei fixo, roto, desprendido.
E se duvidais de mim, acreditai no vento,
olhai ao norte, perguntai ao céu
que vão dizer se espero ainda ou se anoiteço.

Ah! Se perguntar diz-lhe o que sabes.
As oliveiras falarão de mim um dia
quando eu for o olho da lua,
ímpar sobre a festa da noite,
adivinhando conchas da areia,
o rouxinol suspenso de um astro
e o hipnótico amor das marés.

É verdade que estou triste, mas tenho
semeado um sorriso no tomilho,
outro sorriso escondi em Saturno
e perdi o outro não sei onde.
Melhor será que espere a meia-noite
o extraviado odor dos jasmins,
e a vigília do telhado, fria.

Não me lembres seu dedicado sangue
nem que eu pus vermes e espinhos
pra morder sua amizade de nuvem e brisa.
Não sou o ogro que cuspiu em sua água
nem o que um cansado amor paga em moedas.
Não sou o que freqüenta aquela casa
presidida por uma sanguessuga!

(Ali se vai com um ramo de lírios
para que o esmague um anjo de asas turvas.)
Não sou o que trai as pombas,
as crianças, as constelações ...
Sou uma tenra voz desamparada
que sua inocência busca e solicita
com doce assobio de pastor ferido.

Sou uma árvore, a ponta de uma agulha,
um alto gesto eqüestre em equilíbrio;
a andorinha em cruz, o lubrificado
vôo da coruja, o susto de um esquilo.
Sou tudo, menos isso que desenha
sinais de lama nas paredes
dos bordéis e dos cemitérios.

Tudo, menos aquilo que se oculta
sob uma seca máscara de esparto.
Tudo, menos a carne que procura
voluptuosos anéis de serpente
cingindo em espiral viscosa e lenta.
Sou o que tu me mandes, o que inventes
para enterrar meu pranto na neblina.

Se perguntar por mim, diz-lhe que moro
na folha do acanto e na acácia.
Ou, preferindo, diz-lhe que morri.
Dá-lhe o suspiro meu, e o meu lenço;
meu fantasma na nave do espelho.
Talvez eu chore no laurel ou busque
lembranças minhas no feitio de estrela.

Emilio Ballagas - De: Sabor eterno, 1939

(Poeta cubano, nasceu em Camagüey e morreu em Habana)