quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

*

Asas que fossem, tuas
mãos podiam
tocar a íntima
nervura do silêncio.

*

Onde é mais surda
a floresta
aí te penso
e escuto

Albano Martins

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A VIRGINDADE DA AMÉLIA

aceita este livro, diria, mais bonito
do que os outros. encontrarás nele
imagens, sim, imagens que talvez te
surpreendam. mas não te assustes,
tantas vezes to peço, não te assustes.
repara na natureza das coisas, em como
é tão comum depararmo-nos com estas ideias
e talvez entendas

há uma pornografia erudita feita
para gente como nós. uma coisa assim entre
o querer fazer, a aflição espiritual
e o amor eterno

depois vem cá ter. juro-te que às
cinco em ponto da tarde não há ninguém
na casa dos meus pais

Valter Hugo Mãe - pornografia erudita

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

E POR VEZES AS NOITES DURAM ANOS

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
Num segundo se envolam tantos anos

David Mourão-Ferreira

domingo, 20 de junho de 2010

VIAGEM

Quem sabe, quem sabe,
ah, quem sabe
se fui eu que fugi
ou se me abandonaram
à beira de qualquer estrada.
Que terras meus olhos desbravaram,
que mundos vi,
para ser esta saudade de tudo,
uma dor de tudo,
de tudo morrer e renascer em mim!
Em que porto estes músculos
suaram à sombra de guindastes,
que terra áspera e quente a minha enxada rasgou,
de que barco fui piloto
e de que pátria emigrante
para sentir as dores que estão fora de mim?
Quem me deu alma de cigano
e me lançou ao vento
à espera de festim?

Homens da terra e do mar,
duros, de dentes vidrados,
gritando o futuro
e sempre crescendo;
- quem me pôs à frente da guerra,
ébrio de uma luta
que não aprendo?
Homens de longe, estranhos,
esmagando as larvas do celeiro;
- onde vos animei
embora com a pobreza das palavras?
Em que pátria fui vosso companheiro?

Ah, quem sabe
porque esta minha voz enrouqueceu,
esta minha voz que provou o amargo das escarpas
- e gostou!
Quem sabe se um encanto me fez nómada,
nu, faminto e descalço como os mais
ou se todas as almas
esta minha alma penada violou?

Fernando Namora
(foto retirada do blog A Terceira Noite)

domingo, 6 de junho de 2010

LO QUE ME GUSTA DE TU CUERPO

Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo.
Lo que me gusta de tu sexo es la boca.
Lo que me gusta de tu boca es la lengua.
Lo que me gusta de tu lengua es la palabra.

Julio Cortázar

sábado, 15 de maio de 2010

A REPÚBLICA DA POESIA

Para o Chile

Na república da poesia
um comboio cheio de poetas
desliza para sul à chuva
tal como as ameixeiras balançam
e os cavalos escoiceiam o ar,
e as bandas filarmónicas
desfilam pelas ruas abaixo
com trompetes, com chapéus de coco,
seguidas pelo presidente
da república,
que aperta todas as mãos.

Na república da poesia
os monges imprimem versos sobre a noite
em caixas de chocolate conventual,
cozinhas em restaurantes
usam odes como receitas
desde enguias a alcachofras,
e os poetas comem à borla.

Na república da poesia
os poetas lêem para os babuínos
no jardim zoológico, e todos os primatas,
tais como poetas e babuínos, gritam de alegria.

Na república da poesia
os poetas alugam um helicóptero
para bombardearem o palácio nacional
com poemas em marcadores de páginas
e toda a gente no pátio,
cega de choro,
se esforça por apanhar um poema
que flutua do céu.

Na república da poesia
a guarda do aeroporto
não autorizará a tua saída do país
até que lhe declames um poema
e ela diga Ah! Lindo.

Martín Espada

segunda-feira, 26 de abril de 2010

A CRUZ DE GIZ

Eu sou uma criada. Eu tive um romance
Com um homem que era da SA.
Um dia, antes de ir
Ele mostrou-me, sorrindo, como fazem
Para apanhar os insatisfeitos.
Com um giz tirado do bolso do casaco
Ele fez uma pequena cruz na palma da mão.
Ele contou que assim, e vestido à paisana
anda pelas repartições do trabalho
Onde os empregados fazem fila e protestam
E protesta juntamente com eles, e fazendo isso
Em sinal de aprovação e solidariedade
Dá uma palmadinha nas costas do homem que protesta
E este, marcado com a cruz branca
é apanhado pela SA.
Nós rimos com isso.
Andei com ele um ano, então descobri
Que ele havia retirado dinheiro
Da minha caderneta de poupanças.
Havia dito que a guardaria para mim
Pois os tempos eram incertos.
Quando lhe pedi satisfações, ele jurou
Que as suas intenções eram honestas.
Dizendo isso
Pôs a mão no meu ombro para me acalmar.
Eu corri, aterrorizada.
Em casa
Olhei para as minhas costas no espelho, para ver
Se não havia uma cruz branca.

Bertold Brecht

segunda-feira, 19 de abril de 2010

PRESSA DE VIVER

[para o Zé, que nunca lerá este poema]

Negro, trinta e dois anos,
dealer. Pensava que a guerra
no Kosovo tinha por motivo único
a resistência à conversão em euros
- e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão. Noutra noite, vi-me obrigado
a explicar-lhe o melhor que pude
o que era o FMI - que ele decerto
interpretou como um partido de 'tugas
vagamente hermético. De facto, é outra
a sua economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de esquina, os dois ou três filhos
de que apenas bêbedo se lembra.

Mas não é bem disso que eu hoje
queria falar. Passámos a noite
lado a lado, no mesmo balcão.
Demorei algum tempo a cumprimentá-Io
- «tá-se?». Pediu logo grandes, imensas
desculpas por não me ter visto.
Que era «pressa de viver», garantiu-me,
aquilo que nos torna tão cegos é
às evidências, ao rosto desse próximo
que só por bíblico acaso amamos
- quando o ódio, mais discreto,
dá nome e sentido às ruas.

Fingi acreditar, procurei não
desmentir o seu olhar verde
vindo de outro qualquer planeta.
Seria difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva demora de morrer
que me faz sair de casa e procurar,
entre ninguém, a pior das companhias: eu.

Acabou por levar para a rua
uma imperial de plástico, lembrado
talvez dos possíveis clientes
a quem ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o calor sinistro deste Verão.
Na verdade, pouco mais haveria
a dizer sobre este corpo brando que
há vários anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos
- e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem objecto a que chamamos vida.

Manuel de Freitas

terça-feira, 16 de março de 2010

O JARDIM

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

DIZEM

Quando nasci tinha uma faca na mão.
Dizem: é poesia.
Mas peguei na pena, melhor ainda que a faca.
Nasci para ser homem.

Alguém soluça uma felicidade apaixonada.
Dizem: é amor.
Chama-se ao teu seio, simplicidade das lágrimas!
Só contigo eu brinco.

Não recordo nada e também nada esqueço.
Dizem: como é possível?
O que deixo cair mantém-se sobre a terra.
Se o não encontro, tu o encontrarás.

A terra me aprisiona, o mar me dilacera.
Dizem: um dia morrerás.
Mas dizem-se tantas coisas a um homem
que nem sequer respondo.

Attila József

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

CEREJAS, MEU AMOR

Cerejas, meu amor,
mas no teu corpo.
Que elas te percorram
por redondas.

E rolem para onde
possa eu buscá-las
lá onde a vida começa
e onde acaba

e onde todas as fomes
se concentram
no vermelho da carne
das cerejas...

Renata Pallottini

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

TU QUE NUNCA SERÁS

Sábado foi e caprichoso o beijo dado,
Capricho de varão, audaz e fino
Mas foi doce o capricho masculino
A este meu coração, lobinho alado.

Não é que creia, não creio, se inclinado
sobre minhas mãos te senti divino
E me embriaguei, compreendo que este vinho
Não é para mim, mas jogo e roda o dado…

Eu sou a mulher que vive alerta,
Tu o tremendo varão que se desperta
E é uma torrente que se desvanece no rio

E mais se encrespa enquanto corre e poda.
Ah, resisto, mas me tens toda,
Tu, que nunca serás de todo meu.

Alfonsina Storni
(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)