sábado, 29 de março de 2008

"Toco a tua boca com um dedo, toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse a sair da minha mão, como se, pela primeira vez, a tua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no teu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com a minha mão no teu rosto, e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em ti.
Tu olhas-me, de perto, olhas-me, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhamo-nos cada vez mais de perto e os nossos olhos tornam-se maiores, aproximam-se uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no teu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto-te tremular contra mim, como uma lua na água.”

Júlio Cortázar

segunda-feira, 24 de março de 2008

Vice-Versa

Tenho medo de ver-te,
necessidade de ver-te,
esperança de ver-te,
insipidezes de ver-te,
tenho ganas de encontrar-te,
preocupação de encontrar-te,
certeza de encontrar-te,
pobres dúvidas de encontrar-te,
tenho urgência de ouvir-te,
alegria de ouvir-te,
boa sorte de ouvir-te,
e temores de ouvir-te,
ou seja,
resumindo
estou fodido
e radiante,
talvez mais o primeiro
que o segundo
e também
vice-versa

Mário Benedetti

sábado, 22 de março de 2008

Renascer

O encanto fugiu, voou e acabou-se.

Não há o que fazer, nem mesmo ouvir um tango.

No amor o desencanto
equivale à morte. Ele expele,
afasta, finda, sepulta, crema.
Com a mesma força que o encanto
atrai, aproxima, entrelaça.


Por ora não há nada a fazer
senão ocupar-me da terrível tarefa
de retirar milhares de camadas de ti
que se fixaram em mim.
De tanto dormires sobre o meu peito,
a máscara do teu rosto ficou moldada
por sobre o meu coração.

Quando, novamente, o infortúnio atravessar
uma faca enferrujada na minha carne
não terei as tuas mãos para tirá-la
das minhas entranhas.Quando for lua cheia
não te terei ao lado, para aos berros anunciá-la a ti
como se estivesse a anunciar a descoberta
de um astro novo.

Inúteis as lágrimas. Dispensável pôr–me de joelhos.
Se alegre, se saltitante,
à tua frente, como um potro adolescente,
deixei de te encantar,
não seria com a espinha dobrada
e os olhos nevados de sal
que eu faria o teu coração
novamente bombear
carinho por mim.

Nada a fazer.
Excepto aprender, com a aurora
a Renascer.

Adalberto Monteiro

quarta-feira, 19 de março de 2008

Táctica e Estratégia

Minha táctica é olhar-te,
aprender como és,
querer-te como és.
Minha táctica é falar-te
e escutar-te,
construir com palavras
uma ponte indestrutível.
Minha táctica é ficar na tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto,
mas ficar-me em ti.
Minha táctica é ser franco
e saber que és franca,
e que não nos vendamos
simulacros
para que entre os dois
não haja cortina
nem abismos.
Minha estratégia é,
por outro lado,
mais profunda e mais
simples...
minha estratégia é
que um dia qualquer,
não sei como nem sei
com que pretexto,
por fim precises de mim.

Mário Benedetti

O Grito

Se ao menos esta dor servisse,
se ela batesse nas paredes,
abrisse portas,
falasse,
se ela cantasse e despenteasse os cabelos...

Se ao menos esta dor se visse,
se ela saltasse fora da garganta como um grito,
caísse da janela, fizesse barulho
morresse...

Se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força,
depois cuspir a saliva fora,
sujar a rua, os carros, o espaço, o outro...
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre. Tem o direito de não sofrer.

Se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer, doer, doer visível,
doer penalizante,
doer com lágrimas...

Se ao menos esta dor sangrasse!

Renata Pallottini