quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

ROSTO DE VÓS

Tenho uma solidão
tão concorrida
tão cheia de nostalgias
e de rostos teus
de adeuses de muito tempo
e beijos bem-vindos
de primeiras de troca
e de último vagão

Tenho uma solidão
tão concorrida
que posso organizá-la
como uma procissão
por cores
tamanhos
e promessas
por época
por tacto e por sabor

sem um tremor a mais,
abraço-me às tuas ausências
que assistem e me assistem
com meu rosto de vós

Estou cheio de sombras
de noites e desejos
de risos e de alguma maldição

Meus hóspedes concorrem,
concorrem como sonhos
com os seus rancores novos
sua falta de candura
eu coloco-lhes uma vassoura
atrás da porta
porque quero estar só
com meu rosto de vós

Porém o rosto de vós
olha a outra parte
com seus olhos de amor
que já não amam
como alimentos
que buscam a sua fome
olham e olham
e apagam a minha jornada.

as paredes vão-se
fica a noite
as nostalgias vão-se
não fica nada

Já meu rosto de vós
fecha os olhos.

E é uma solidão
tão desolada.

Mario Benedetti, nasceu em Montevideo no dia 14 de setembro de 1920

domingo, 15 de fevereiro de 2009

MELANCOLIA

Olhando distraído o armário eu vi
o sol que nele se reflectia
E comecei «um quadrado de luz
num rectângulo de sombra.
Ou talvez um quadro
uma equação
um exercício de pura geometria.»
Mas enquanto fazia isto que faço
já o sol no ocidente se escondia
deixando no armário um breve traço
de profunda profunda melancolia.

Manuel Alegre

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

É TARDE, MUITO TARDE DA NOITE

É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado.
Exactamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para me interessarem as pessoas.

E é tarde, devia ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço e a ouvir música.
Desfeito de cansaço,incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar à força de cansaço.
Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano de César Franck,
e depois os Wesendonck Lieder)
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isoldano que não aceitarei nunca,
l' amor che muove il sole e l' altre stelle.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa ,
e de cuja dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.

Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
Qu' ai-je à faire de l' eternel? I live here.
Non abbiamo confusion. E aqui é que morrerei
danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado.

Jorge de Sena