terça-feira, 30 de junho de 2009

POEMA DA ETERNA PRESENÇA

Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva,
de olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito!
Essa incomensurável distância de meio metro
que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)

O que me perturba é que o todo possa caber na parte,
que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote.

O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim, de mim,
pobre de mim, que sou parte do todo.
E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas
porque eu não sou braço nem sou perna.

Se eu tivesse a memória das pedras
que logo entram em queda assim que se largam no espaço
sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
se eu tivesse a memória da luz
que mal começa, na sua origem, logo se propaga,
sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra,
os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram continentes,
a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que galgaram sobre a Terra.

Mas não esqueci tudo.
Guardei a memória da treva, do medo espavorido
do homem da caverna
que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz;
guardei a memória da fome;
da fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez estender os lábios sôfregos para mamar quando cheguei ao mundo;
guardei a memória do amor,
dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez desejar a mulher do próximo e do distante;
guardei a memória do infinito,
daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos,
em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado,
à formação do Universo.

Tudo se passou defronte de partes de mim.
E aqui estou eu feito carne para o demonstrar,
porque os átomos da minha carne não foram fabricados de propósito para mim.
Já cá estavam.
Estão.
E estarão.

António Gedeão, in "Poemas Póstumos"

domingo, 7 de junho de 2009

MUITO MAIS GRAVE

Todas as partes de minha vida têm algo teu
e isso na verdade não é nada de extraordinário
tu o sabes tão objectivamente como eu.
No entanto há algo que gostaria de esclarecer-te,
quando digo todas as partes,
não me refiro só a isto de agora,
a isto de esperar-te e aleluia encontrar-te,
e caramba perder-te,
e voltar a encontrar,
e oxalá nada mais.
Não me refiro só a que de pronto digas, vou chorar
e eu com um discreto nó na garganta, bom, chora.
E que um lindo aguaceiro invisível nos ampare
e quem sabe por isto saia de seguida o sol.
Nem me refiro só a que dia após dia
aumente o stock das nossas pequenas e decisivas cumplicidades,
ou que eu possa crer que possa converter os meus reveses
em vitórias,
ou me faças o terno presente do teu mais recente desespero.
Não.
A coisa é muitíssimo mais grave
quando digo todas as partes
quero dizer que além desse doce cataclisma,
também estás a reescrever a minha infância,
essa idade em que dizemos coisas adultas e solenes
e os solenes adultos comemoram-nas,
e tu ao contrário sabes que isso não serve.
Quero dizer que estás a rearmar a minha adolescência,
esse tempo em que fui um velho carregado de receios,
e tu sabes ao contrário extrair desse deserto
o meu gérmen de alegria e presenteá-lo olhando-o.
Quero dizer que estás a sacudir a minha juventude,
esse cântaro que ninguém nunca pegou nas suas mãos,
essa sombra que ninguém aproximou da sua sombra,
e tu ao contrário sabes estremecê-la
até que comecem a cair as folhas secas,
e fique a armação da minha verdade sem proezas.
Quero dizer que estás a abraçar a minha maturidade,
esta mistura de estupor e experiência,
este estranho confim de angústia e neve,
esta vela que ilumina a morte,
este precipício da pobre vida.
Como vês é mais grave.
Muitíssimo mais grave.
Porque com estas ou com outras palavras
quero dizer que não és tão só
a querida menina que és,
e também as esplêndidas ou cautelosas mulheres
que quis ou quero.

Porque graças a ti descubri,
(dirás já era hora e com razão),
que o amor é uma baía linda e generosa,
que se ilumina e se escurece,
de acordo com a vida,
uma baía onde os barcos chegam e se vão,
chegam com pássaros e augúrios,
e vão-se com sirenes e nuvens carregadas.
Uma baía linda e generosa,
onde os barcos chegam e se vão.
Mas tu,
por favor,
não te vás.


Mario Benedetti