terça-feira, 20 de maio de 2008

( Não: não quero nada )

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo …
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Álvaro de Campos

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Matadouro do Dia

Avisem os tristes da cidade:

darei de beber
de meus olhos perfurados
A quem ficar ao meu lado.
Darei de comer
de meu corpo torturado
aos nus e desesperados.

Venham beber o vinho amargo
da minha bêbada amizade
os que nunca se encontraram.
Voltaremos tristes para casa
( o peso do mundo nos ombros )
Só depois de beber, e ficar puros
esqueceremos as coisas
( seus escuros muros altos ).

Venham beber o vinho amar-o-amargo
do meu sangue violentado.

No porto inseguro de mim
há pão e fel para todos.
O país é rico e sujo:
Amanhã seremos degolados.

Darei de beber
do meu sangue aleijado
aos tristes, aos suicidas
aos pederastas, às prostitutas.

VAMOS TODOS, MUTILADOS
AO MATADOURO DO DIA!

Brasigóis Felício