quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

ROSTO DE VÓS

Tenho uma solidão
tão concorrida
tão cheia de nostalgias
e de rostos teus
de adeuses de muito tempo
e beijos bem-vindos
de primeiras de troca
e de último vagão

Tenho uma solidão
tão concorrida
que posso organizá-la
como uma procissão
por cores
tamanhos
e promessas
por época
por tacto e por sabor

sem um tremor a mais,
abraço-me às tuas ausências
que assistem e me assistem
com meu rosto de vós

Estou cheio de sombras
de noites e desejos
de risos e de alguma maldição

Meus hóspedes concorrem,
concorrem como sonhos
com os seus rancores novos
sua falta de candura
eu coloco-lhes uma vassoura
atrás da porta
porque quero estar só
com meu rosto de vós

Porém o rosto de vós
olha a outra parte
com seus olhos de amor
que já não amam
como alimentos
que buscam a sua fome
olham e olham
e apagam a minha jornada.

as paredes vão-se
fica a noite
as nostalgias vão-se
não fica nada

Já meu rosto de vós
fecha os olhos.

E é uma solidão
tão desolada.

Mario Benedetti, nasceu em Montevideo no dia 14 de setembro de 1920

7 comentários:

Anónimo disse...

Melancolia, Solidão,... hmm...
(isto está mal)

Anónimo disse...

Por vezes, habituamo-nos a viver diáriamente com a solidão, que se torna dificil encarar a vida de outra forma, ou seja, sem a própria solidão...
Obrigamo-nos aos retiros, aos pensamentos, ás melancolias, ás nostalgias, ás ausências, aos sonhos... como se fosse, apenas nesse mundo paralelo que a vida tem nexo (se é que a vida tem algum tipo de nexo). Como se fosse nesse mundo, que tudo que tem realmente interesse acontece, como se fosse aí que tudo passa a ser concorrido, ...aí aonde estão as memórias, as vividas e as não vividas, as sofridas e as não sofridas.

cláudia pinho disse...

É como dizes, por vezes, habituamo-nos a viver diáriamente com a solidão, e se houve anteriormente outro modo de vida ficou para trás, encerrado. Perdeu-se-lhe o rasto. A solidão tráz uma espécie de tristeza orgulhosa, o tal mundo paralelo de que falas, e que só um habita. Um e os seus fantasmas, os "hóspedes" de Benedetti, e por vezes um tal rosto. "E a tristeza traz sempre uma esperança, de um dia não ser mais triste não", sublinha Vinicius de Morais, sendo um caminho a percorrer a sós.
A solidão questionaa a cor, a esperança, a melancolia, o sonho... e depois chora a poesia.
Chega-se a uma altura em que é difícil destinguir se realmente se sofre ou não. Às vezes fala-se em estados de pasmaceira, mas essa definição surge quando o ritmo do mundo exterior se afasta muito do mundo interior e um não acompanha, nem de longe, o outro. E acabam por ser conflituosos desconhecidos que se empatam.
O que é ou não vivido não interessa, afinal tudo existe "nem que seja na minha cabeça".

Anónimo disse...

A solidão é uma prisão de pensamentos,de reflexões,de dramas,de paixões,de ideias,de exercicio.
Nessa prisão desenvolvemos os sentidos,apuramos o olfacto,o toque,o raciocinio,a visão.
Vivemos,morremos e voltamos a viver.
Começamo nos aperçeber que a prisão não passa dum "palco" onde somos espectadores anteriormente hipnotizados,drogados,desatentos...
Assim sendo há que cortar os fios que nos prendem e voar,e voar,e voar, mas não para fugir, mas para chegarmos mais alto dos que nos prendem e usar essa aprendizagem para soltar todos os que estão presos por fios neste mundo que não passa dum "palco" de meia duzia.
*

Anónimo disse...

'Tristeza orgulhosa' excelente visão sobre a solidão!
E o que Vinicius de Moraes sublinhou, fez-me lembrar uma ópera de Pucini, "Turandot". A princesa Turandot perguntou ao príncipe. "Qual é o fantasma que nasce todas as noites, apenas para morrer quando chega a manhã?" "É a esperança." respondeu o príncipe.

(...)

...E afinal tudo acaba por ser vivido, de uma forma ou de outra, "nem que seja na minha cabeça".

Unknown disse...

Ocorre-me que vais chegar distinta
não exactamente mais linda
nem mais forte
nem mais dócil
nem mais cauta
somente que vais chegar distinta
como se esta temporada de não me veres
te tivesse surpreendido a ti também
talvez porque sabes
como te penso e te enumero

depois de tudo a nostalgia existe
ainda que não choremos nos corredores fantasmáticos
nem sobre as almofadas de candor
nem por baixo do céu opaco

eu nostalgio
tu nostalgias
e que me interessa que ele nostalgie

o teu rosto é vanguarda
talvez chegue primeiro
porque o pinto nas paredes
com traços invisíveis e seguros

não esqueças que o teu rosto
me olha como povo
sorri e enfurece-se e canta
como povo
e isso dá-te uma luz
inapagável

agora não tenho dúvidas
vais chegar distinta e com sinais
com novas
com profundidade
com franqueza

sei que vou querer-te sem perguntas
sei que vais querer-me sem respostas



Mario Benedetti

cláudia pinho disse...

V,
obrigado por teres deixado este poema,o Mario Benedetti é sempre bem-vindo. E sem perguntas, nem pedindo respostas aprecio a sensibilidade da escolha, tráz sem dúvida "...uma luz
inapagável..."